Na
terceira existência
Se mete comigo.
Nem me conhece! Qual é? Alguém gritando enquanto atravesso
a avenida em frente às latas. Quase entardecer de uma sexta-feira nervosa e
insípida. Depois de quatro dias de chuva, o povo andava nervoso à beça e tudo
que queria era sair do inferno da semana, do inferno do trânsito. Eu, do
inferno da minha vida.
Nascida de exclusões: de tudo na vida sobrou essa
sensação de amargo na boca. Aonde vou, os olhares enviesados de desprezo,
espanto, pena, ridículo, loucura. Nasci pra isso: pra que alguns ao meu redor
pudessem sentir sua vida andar pra frente - só não sei o que isso significa -,
mas que sirvo de base para o sucesso de muitos, isso sim. Não que me sinta mal
em não ser um sucesso. Não me sinto mal em ser nada, mas ser referência... É
demais pra mim. Aliás, persegui obsessivamente o nada em minha vida, e
encontrei apenas seres transparentes tão mais existência do que qualquer outra
coisa.
Pura existência, um objetivo lúcido de anos. O
contra-senso da lucidez atrapalhou um pouco. Como ser pura existência desejando
sê-lo? Também quis ser anarquista e esbarrei no mesmo problema. Conceito não
cabe na pura existência, não cabe no anarquismo. É desconceito vivido, mas como
tudo, conceituado, traçado, medido, estratificado, estatisticamente comprovado,
qualitativa e quantitativamente depurado. Foi a desistência mais dolorosa - o
meu fracasso - não ter o direito à pura existência sem a ameaça permanente de
internação sobrevoando meu espírito. Assim não dá. Nessa desistência de direito
pendente e impossível, volto com toda a pompa e circunstância a um grande supermercado.
A primeira compra depois de meses catando galhos secos e fazendo o miojo com
ovo na hora do almoço. E quando chovia? Pura existência não cabe a prevenção de
catar galhos secos a mais em dias de sol.
Saio de capa, espada e cartão de débito ao hipermegasuper
com direito a exposição artística, farmácia, locadora, loja com artigos para
peixes ornamentais... Um peixe pode ser
ornamental? Praça de alimentação. Só o nome já me angustia. Praça sempre me
lembrou banco, árvore, balanço, escorregador. Alguém inventou esse nome
consumidor de gordura, fritura e hambúrguer fabricado que nem salsicha. Gosto
de plástico. Ninguém gosta, mas o brinquedo que vem de brinde faz a fila dar
voltas na tal praça. Posso até imaginar as pessoas sentadinhas, bebendo suas
gasosas, quiçá uma cervejinha desprevenida, e ao redor, um aquário gigante com
tubarões a espera do engorde. Uma pracinha cheia de alimentos, homem feito
banana, precisa tirar a roupa, descascar, e só então, comer.
Pego o carrinho - pelo menos ainda me divirto em
meio aos corredores abarrotados de papéis e caixinhas coloridas com nomes
estranhos e desabituados: pipe and roses,
peels, perfiltech, edimar pimenta,
loctite, caixa de isopor lazer?
É? Kintegral fumacense, zilse, feijão mãe veia, ração k-della,
e guardanapos de papel face a face
com direito a um coração rosa estampado no plástico. Comprei. Carência faz
essas coisas.
Na segunda esquina, onde admiro as cores bem
traçadas das embalagens contendo sei lá eu o quê, uma carinha conhecida. É. E
mais, uma carinha que puts, não queria encontrar: Fernandinha azeite de oliva gallo a coçar a cabeça charmosa escolhendo
xampus. Desisti do sabonete que limpa e hidrata a pele para seguir rumo às
carnes e me deparar com aquele cara: o Alfredo escolhendo uma picanha,
vermelha, viva. Ao menos parecia pular no pescoço dele. Outro ex fucking guy
displicente de uma lista quase recente. Tá, a carne moída do macarrão básico
fica pra depois. Passo a passo, já meio desconfiada desse mundo que me despreza
tanto – e com tanto orgulho desse desprezo – me encaminho para os produtos nus:
saladas, frutas e verduras empilhadas em triângulos perigosos, tomates quase
assassinos, a luz fluorescente deixando a cor verde saturada. Fresquinha. Igual
a travesti Edite testando a madureza dos mamões. Ai.
Outra desviada e naquelas alturas aromáticas
artificiais, um cheirinho de café recém feito a dar uma tonteada boa, a moça de
camisa branca e vestidinho azul colegial sorri gentilmente. Me dou conta que
não sou mais gente, e que nunca serei bicho. Minha cabeça nesse instante precisa
respirar. Tudo fica fluorescente e fosco. Fora de foco mesmo. Meu botão
automático não funciona, o ar falta e não movimento mais narinas e pulmões. Na
estante em que estopei, uma fila interminável de espelhinhos comigo a me olhar
aturdida: o ar faltando. Faltando ar e ar faltando. Penso na pôrra dessa ideia
de ir direto do mato a um ambiente sem relógio nem janelas, apenas etiquetas
numeradas e em fila, a espera de mãos ansiosas. Um ritual que não consigo retomar.
Cambaleando, a muito custo entro em um corredor de
roupas coloridas, com artigos de metal curvos pra enganchar bicho desavisado.
Linhas, varas, minhocas artificiais. Meus pulmões já não suportam mais a
tentativa de buscar ar, um ar rarefeito que não me dá alívio nenhum, uma nesga
de ar, suficiente só pra não parar de vez. Não quero cair e percebo vagamente
tudo escurecer e sons e plásticos e um tato de tecidos todos em cima de mim.
Soterrada de moletons e neoprene, abro vagarosamente os olhos e ali me encara
aquela pele nova. Um macacão espesso, articulado e folgado. Um capacete
fechando em rosca, impermeabilizando meu pânico – meus pensamentos cabem todos
ali. Um escafandro. Vermelho com tubos verde escuros.
Visto e volto a respirar. Um alívio imenso e imerso.
Olho ao redor e tudo parece seguramente distante. Nada como olhar feito peixe,
na viseira feita para o fundo do mar. Recupero a respiração, levanto, pego meu
carrinho e saio para olhar o corredor agora imensamente largo e a prateleira
dessa feita inatingível. Desisto das compras e vou para a rua. Ando leve e lenta.
Saio pela avenida de três pistas, ouço longe buzinas e freios, protegida pela
minha nova existência. Nada pode me fazer mal. O mundo não está mais ao meu
alcance. Eu, não estou mais ao alcance do mundo.