controvérsias

"A cada mil lágrimas sai um milagre”

Alice Ruiz

sábado, 2 de agosto de 2014

Na terceira existência

Se mete comigo. Nem me conhece! Qual é? Alguém gritando enquanto atravesso a avenida em frente às latas. Quase entardecer de uma sexta-feira nervosa e insípida. Depois de quatro dias de chuva, o povo andava nervoso à beça e tudo que queria era sair do inferno da semana, do inferno do trânsito. Eu, do inferno da minha vida.

Nascida de exclusões: de tudo na vida sobrou essa sensação de amargo na boca. Aonde vou, os olhares enviesados de desprezo, espanto, pena, ridículo, loucura. Nasci pra isso: pra que alguns ao meu redor pudessem sentir sua vida andar pra frente - só não sei o que isso significa -, mas que sirvo de base para o sucesso de muitos, isso sim. Não que me sinta mal em não ser um sucesso. Não me sinto mal em ser nada, mas ser referência... É demais pra mim. Aliás, persegui obsessivamente o nada em minha vida, e encontrei apenas seres transparentes tão mais existência do que qualquer outra coisa.

Pura existência, um objetivo lúcido de anos. O contra-senso da lucidez atrapalhou um pouco. Como ser pura existência desejando sê-lo? Também quis ser anarquista e esbarrei no mesmo problema. Conceito não cabe na pura existência, não cabe no anarquismo. É desconceito vivido, mas como tudo, conceituado, traçado, medido, estratificado, estatisticamente comprovado, qualitativa e quantitativamente depurado. Foi a desistência mais dolorosa - o meu fracasso - não ter o direito à pura existência sem a ameaça permanente de internação sobrevoando meu espírito. Assim não dá. Nessa desistência de direito pendente e impossível, volto com toda a pompa e circunstância a um grande supermercado. A primeira compra depois de meses catando galhos secos e fazendo o miojo com ovo na hora do almoço. E quando chovia? Pura existência não cabe a prevenção de catar galhos secos a mais em dias de sol.

Saio de capa, espada e cartão de débito ao hipermegasuper com direito a exposição artística, farmácia, locadora, loja com artigos para peixes ornamentais...  Um peixe pode ser ornamental? Praça de alimentação. Só o nome já me angustia. Praça sempre me lembrou banco, árvore, balanço, escorregador. Alguém inventou esse nome consumidor de gordura, fritura e hambúrguer fabricado que nem salsicha. Gosto de plástico. Ninguém gosta, mas o brinquedo que vem de brinde faz a fila dar voltas na tal praça. Posso até imaginar as pessoas sentadinhas, bebendo suas gasosas, quiçá uma cervejinha desprevenida, e ao redor, um aquário gigante com tubarões a espera do engorde. Uma pracinha cheia de alimentos, homem feito banana, precisa tirar a roupa, descascar, e só então, comer.

Pego o carrinho - pelo menos ainda me divirto em meio aos corredores abarrotados de papéis e caixinhas coloridas com nomes estranhos e desabituados: pipe and roses, peels, perfiltech, edimar pimenta, loctite, caixa de isopor lazer?  É? Kintegral fumacense, zilse, feijão mãe veia, ração k-della, e guardanapos de papel face a face com direito a um coração rosa estampado no plástico. Comprei. Carência faz essas coisas.

Na segunda esquina, onde admiro as cores bem traçadas das embalagens contendo sei lá eu o quê, uma carinha conhecida. É. E mais, uma carinha que puts, não queria encontrar: Fernandinha azeite de oliva gallo a coçar a cabeça charmosa escolhendo xampus. Desisti do sabonete que limpa e hidrata a pele para seguir rumo às carnes e me deparar com aquele cara: o Alfredo escolhendo uma picanha, vermelha, viva. Ao menos parecia pular no pescoço dele. Outro ex fucking guy displicente de uma lista quase recente. Tá, a carne moída do macarrão básico fica pra depois. Passo a passo, já meio desconfiada desse mundo que me despreza tanto – e com tanto orgulho desse desprezo – me encaminho para os produtos nus: saladas, frutas e verduras empilhadas em triângulos perigosos, tomates quase assassinos, a luz fluorescente deixando a cor verde saturada. Fresquinha. Igual a travesti Edite testando a madureza dos mamões. Ai.  

Outra desviada e naquelas alturas aromáticas artificiais, um cheirinho de café recém feito a dar uma tonteada boa, a moça de camisa branca e vestidinho azul colegial sorri gentilmente. Me dou conta que não sou mais gente, e que nunca serei bicho. Minha cabeça nesse instante precisa respirar. Tudo fica fluorescente e fosco. Fora de foco mesmo. Meu botão automático não funciona, o ar falta e não movimento mais narinas e pulmões. Na estante em que estopei, uma fila interminável de espelhinhos comigo a me olhar aturdida: o ar faltando. Faltando ar e ar faltando. Penso na pôrra dessa ideia de ir direto do mato a um ambiente sem relógio nem janelas, apenas etiquetas numeradas e em fila, a espera de mãos ansiosas. Um ritual que não consigo retomar.

Cambaleando, a muito custo entro em um corredor de roupas coloridas, com artigos de metal curvos pra enganchar bicho desavisado. Linhas, varas, minhocas artificiais. Meus pulmões já não suportam mais a tentativa de buscar ar, um ar rarefeito que não me dá alívio nenhum, uma nesga de ar, suficiente só pra não parar de vez. Não quero cair e percebo vagamente tudo escurecer e sons e plásticos e um tato de tecidos todos em cima de mim. Soterrada de moletons e neoprene, abro vagarosamente os olhos e ali me encara aquela pele nova. Um macacão espesso, articulado e folgado. Um capacete fechando em rosca, impermeabilizando meu pânico – meus pensamentos cabem todos ali. Um escafandro. Vermelho com tubos verde escuros.


Visto e volto a respirar. Um alívio imenso e imerso. Olho ao redor e tudo parece seguramente distante. Nada como olhar feito peixe, na viseira feita para o fundo do mar. Recupero a respiração, levanto, pego meu carrinho e saio para olhar o corredor agora imensamente largo e a prateleira dessa feita inatingível. Desisto das compras e vou para a rua. Ando leve e lenta. Saio pela avenida de três pistas, ouço longe buzinas e freios, protegida pela minha nova existência. Nada pode me fazer mal. O mundo não está mais ao meu alcance. Eu, não estou mais ao alcance do mundo.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Ai, coisa boa de brincar!

HDR...

















HDR "in motion"








domingo, 11 de agosto de 2013

Por Isadora Mayer

Spiegel                                                            Espelho
Ich sehe                                                          Eu vejo
Du siehst mir                                                  Você me vê
Wir sind keine brüder                                      Não somos irmãos
Freunde                                                          Amigos


Quem diria que minha sobrinha de 12 anos faria uma linda poesia em alemão?
E ainda tirar um belo 3° lugar nesse concurso?