controvérsias

"A cada mil lágrimas sai um milagre”

Alice Ruiz

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Para me conhecer melhor

Pela internet, despejaram desejos em cima da minha vida. Adoro como vivo, sem dúvida nenhuma. Mas não é o paraíso, nem tenho tal pretensão. Foi uma escolha, preço caro de pagar, mas não me arrependo nem um milimetrozinho sequer. Não é nada romântico, nada heróico e nem nada isolado demais, tanto que tenho internet conectada 24 horinhas...

Moro em Florianópolis, na região sul da ilha, dentro do Parque Municipal da Lagoa do Peri

Mais ou menos 5 anos atrás aluguei uma casinha no final da rua. A última casinha, de madeira, cheia de frestas, onde convivia com corruíras, sapos, aranhas, saracuras, tucanos, aracuãs, gralhas azuis, meus cachorros, cotias, cobras e ratinhos do campo. Inevitável, tempos sem grana nenhuma. Tempos de depressão também. Fui para tentar me encontrar (comecei a achar ridículo esse negócio de se encontrar, como "se encontrar", se estou o tempo todo aqui? Nenhum espelho me evita...).

Como a última casa, tinha na minha beira a mata selvagem do parque, intocável, com uma trilha muito procurada por estudantes e turistas. Trilha muito antiga, feita por escravos, que cruza a ilha do mar aberto até a baía. Essa trilha passa por uma cachoeira com uma piscina incrível e mutucas insuportáveis. Seguindo além, chegamos até os poucos alambiques do sertão do Peri, resultado das ruínas de engenhos de farinha de mandioca. As fazendas de outrora, do outro lado dos morros, foram abandonadas no séc. XIX.

Nessa casinha, feita de uma peça grande e alta, cheia de janelas improvisadas, com um mezanino de quarto, mergulhei, surtei, ressuscitei. Tinha uma hortinha com rúcula, rabanete, alface e tomatinhos. Catava lenha todos os dias para o nissin miojo com ovo e café de cevada, até que... um dia choveu e fiquei sem nissin, sem café e aprendi a guardar lenha seca... Depois, aprendi a pescar, descobri que espinafre nasce na beira da praia e que os abacateiros das ruas são extremamente generosos com seus frutos suculentos. O vizinho tem um pomar de caqui que nós colhemos só o que comemos. E peixe com limão feito na churrasqueira passou a fazer parte do meu almoço naqueles tempos.

Todos os dias de sol, no anoitecer, naquele lusco fusco cheio de cores, via as fadas dançando sobre as águas rasas e limpas da lagoa. Na beira da mata, vinham seres encantados curiosos de mim, e fizemos uma amizade silenciosa. As saracuras vinham todos os dias roubar a ração dos cachorros, assim como as cotias, que, cuidadosas, se jogavam na água, perseguidas pelos meus bichos. Ali vi cachorro fazer amizade com potro, cobra não picar por decisão sua e não falta de oportunidade, ouvia a lagoa sussurrar todos os dias suas mazelas e alegrias. Vi gnomo levar susto de perceber que eu o vi, ou talvez ele tenha levado um susto do meu susto. Saímos correndo para lados opostos, os dois bobos.

Lá o tempo passa no seu próprio ritmo, não sei quais os critérios, mas tem outro tempo, às vezes muito rápido, às vezes tão lento que uma horinha parece ser 3 ou 4 horas. E às vezes, uma hora parecem minutos. Foi tudo de bom e tudo de ruim ao mesmo tempo. No anoitecer, chegava em minha casa o cheiro da dama da noite acordando, inundando minha alma de fantasia. Ao lado da casa, uma árvore de contos de fadas, toda retorcida, uma árvore perigosa, cujos frutos são mortais e as flores alucinógenas. Uma datura, trombeta de anjo, com suas flores brancas, caídas, poucas folhas verde claro. Embaixo dela nada cresce e nenhum animal se aproxima de sua pouca sombra. Conta a lenda que quem descansa embaixo dela, esquece uma boa parte de sua vida. Além da lenda da lagoa, que diz que quem bebe a água da lagoa, sempre volta, e eu brinco que bebi água demais e não vou embora nunca.

Fiquei três anos. Depois a dona me mandou embora para aumentar o aluguel bem mais do que o índice oficial (prática comum aqui) e, sempre dentro do parque, pulando um bom tempo de casa em casa, parei em um terrenão cheio de pitangueiras, aroeiras, capim, unha de gato, rosetas, girassol e hibiscos, onde aparecem os sabiás laranjeiras, as corujas, gaivotas e urubus sinalizando a morte de algum bicho desgarrado.

Bem na beira do mar e com uma outra casa no mesmo terreno, onde moram meus melhores amigos. Nossos vizinhos ficam bem distantes, temos uma privacidade visual e auditiva plena e o mar é nosso quintal. Barulho de mar, barulho da avenida também. A praia aqui é vazia, areia muito fofa impede os caminhantes e o mar muito bravo afasta os nadadores. A energia aqui é muito outra, porque o vento sopra gigante o tempo todo, afastando o silêncio e impedindo a criação de raízes internas e externas.

Mas é tudo muito perto e a lagoa é visitada com bastante freqüência. A praia da Armação fica mais ou menos a 1 km de distância com uma infra simples e suficiente (leia-se mercadinhos, fruteira, farmácia, vídeo locadora, restaurantes de verão, lojinha de 1,99, caldinho de cana). O centro de Florianópolis fica a 25 km daqui, atravessando inúmeros bairros.

Aqui gosto de dormir ao relento, na beira do mar. Gosto de viajar nas estrelas e na profundidade do céu. Tô mais perto da arte (e a minha é digital, olha a contradição). E as baleias nessa época do ano, que nos trazem vaidade, tristeza, curiosidade, tranqüilidade e muita beleza. Ontem morreu um filhote de 2 toneladas preso numa rede de pesca. E chegaram mais 5 mães com seus filhotes na nossa praia, com o esfriamento da água.

Essa é nossa maior diversão de inverno, assim que chega baleia a comunicação via telefone e bicicleta enche a praia de gente. A lua cheia nascendo no mar também é uma grande festa. A praia fica cheia e o silêncio é incrível. Um ritual quase mensal (às vezes nubla tudo) fantástico.

Não temos televisão, não nos interessam as políticas internacionais ou nacionais (ninguém vota da nossa tribo), olimpíadas para nós é uma viagem surreal da competitividade humana e nossa maior arma é o mutirão. Nossos dias são preenchidos com mar e poesia, pão e sal e muita música, fotografia (minha profissão) e conhecimento. Nossos interesses são da alma e construímos um ritmo de observação de tudo: através das formigas tenho a previsão do tempo e se o dia vai ser tranqüilo, perigoso ou agitado. E os cuidados com nossos animais (4 cachorros e 6 gatos, entre as duas casas). É incrível, mas ontem mesmo aconteceu algo mágico demais. Nosso pequenininho, mais recente gatinho de 6 meses, o Tuti Tutankamon, chegou com um troféu para me dar de presente: um ramo de flores. Rimos muito com o romantismo e carinho desse gato que é tudo de bom. É o mais popular de todos, consegue fazer amizade com todos os cachorros e gatos, que entre eles, tem suas brigas, suas diferenças, se dão com uns e não se dão com outros, e assim vai. Mantemos nossa vida, nosso ritmo e nossas prioridades com muito custo, porque o social e a questão financeira vivem nos empurrando para onde não desejamos ir. Odiamos lugares como shopping center, mas amamos um ótimo vinho.
A praia da Armação não tem meninos de rua, não tem ninguém morando na rua, com exceção do Alexandre, um garoto que tomou chá de trombeta e não voltou mais da viagem e fica perambulando por aí. Todos cuidam dele, dando comida, banho eventual e roupas.

Temos nossas pragas como bichos de pé, carrapatos, bernes e bicheiras. Temos gatos e cachorros de rua além da conta e cada ninhada é um super problema. Castramos tudo o que dá, porque não conseguimos manter essa bicharada da rua. Nossos animais são absolutamente livres, não temos um jardim fechado e eles passeiam a vontade e voltam quando querem. Nossos eletrodomésticos também sofrem muito e logo estragam pela maresia próxima e as constantes quedas de luz.

Nossa tribo não dá valor ao trabalho, ao sucesso profissional ou a riqueza. Valorizamos a generosidade, o conhecimento, a solidariedade, a qualidade dos fazeres. Isso não significa que a gente não trabalhe, pelo contrário, trabalhamos o tempo todo, buscando uma ponte com o “mundo dos homens” (é como chamamos o mundo dos negócios, do comércio excessivo, do centro nervoso, da economia como prioridade antes do ser humano, das relações de trabalho, das relações de perversidade social, representação social antes do ser, dos conceitos que julgam, mas não perguntam). Mas sem nos violentar, peça qualquer coisa para mim, eu faço. Mas não me peça para ser desleal, para ser infiel com os meus sentimentos, com a minha ética extremamente rígida. Não me peça para matar, competir, vestir o que não posso (fico ridícula num tailler). Não me peça para não oferecer carona, casa, comida, carinho, só por desconfiança. Não me peça para dispensar meus amigos e visitantes eventuais por falta de tempo. Tenho meus vícios antigos, fumo um maço de cigarros por dia e adoro uma coca cola. É meu paraíso, meu inferno, é minha vida, escolhida e construída. Por isso sou feliz. Por isso mesmo na tristeza, ou na eventual loucura, ainda assim eu sou feliz. Mesmo com sobrepeso, sem independência financeira, ainda assim, eu sou feliz. Não vai durar eternamente, tudo muda, inclusive nossos desejos. Tenho um sonho capaz de me mover daqui, mas jamais voltaria a um apartamento ou a uma cidade grande, pois seria a morte em vida minha. Nossa maior batalha, nosso maior desafio, é ser a cada dia uma pessoa melhor, é compreender cada vez mais o outro, é querer ver nosso entorno feliz.