controvérsias

"A cada mil lágrimas sai um milagre”

Alice Ruiz

sábado, 24 de janeiro de 2009

Meu Deus...

(texto de José Roberto Torero, tirado da Revista Fórum - outro mundo em debate, nº 2, 2001)

Eram 5h da tarde e, como fazem todos os dias desde o início dos tempos, os deuses juntaram-se numa nuvem para tomar seu chá (ou, no caso de Odin, cerveja). Os anjos voavam para lá e para cá servindo ambrosia e os querubins faziam o som ambiente, tocando harpa (Pan, de vez em quando, acompanhava no flautim).
Tudo ia bem e a reunião seguia animada: Zeus fazia suas imitações e Baco, já um pouco bêbado, imitava o Cauby. Porém, num dado momento, Deus falou para Alá (que é um sujeito parecido com Deus, só que com turbante):
- Os seus rapazes estragaram uma das minhas cidades por estes dias.
- Sua, não, que os motoristas de táxi são meus, interrompeu Vishnu (que é parecido com Deus, só que mais escuro).
- Alá sabe o que eu quero dizer, falou Deus, balançando o gigantesco indicador.
- Acidentes acontecem..., respondeu Alá.
- Acidente?
- Está bem, erros.
- Pois sua turma comete erros demais!
- E vocês? Pensa que eu já esqueci aquela história de Cruzadas?
- Você sempre volta para esse assunto...
- Até hoje não escutei seu pedido de desculpas.
- Os rapazes entenderam errado as minhas palavras.
- Digo o mesmo.
- Eles nos levam muito a sério, disse Javé (que é muito parecido com Deus, só que com um nariz maior) interrompendo a conversa dos dois. -Falando nisso, vocês conhecem aquela do judeu, do português e do papagaio vesgo?
- Não é hora para anedotas, falou Alá.
- Tudo bem, vou contar essa para o Quetzacóatl, despediu-se Javé resmungando.
- Onde estávamos?, perguntou Deus.
- Em todo lugar, respondeu Alá.
- Não, em relação à conversa.
- Ah, sim. Falávamos de intolerância e vingança.
- Pois é, o pessoal lá de baixo não consegue conviver direito.
- E nós aqui em cima nos damos tão bem... Temos um entendimento divino. É como se fôssemos uma família.
- Talvez mais que isso.
- Como assim?, perguntou Alá.
- Sabe o que eu penso?
- Como é que eu vou saber? Você não diz que é onisciente?!
- Penso que nós todos somos um.
- Já não basta você querer ser três, agora quer ser todos.
- É sério. Acho que eu, você, Javé..., e mesmo os chefes dos politeístas, como Zeus e Oxalá, somos todos um só, mas visto de maneiras diferentes. Interpretações culturais distintas de um mesmo ser.
- Já que estamos em clima de confissão, vou lhe dizer uma coisa ainda pior.
- É algo sobre Afrodite?
- Não, sobre os deuses em geral.
- Pena, pena...
- Desconfio que nós nem existimos. Somos apenas símbolos, tentativas do homem explicar sua origem, de encontrar um sentido para sua vida, um consolo para sua morte.
- Mas nós não estamos conversando agora?, observou Deus enquanto cofiava a sua vasta barba.
- Vai saber... Podemos apenas ser personagens de um escritor. E ruim.
- Se isso for verdade, o homem está entregue a si mesmo e nós não temos nada a ver com a história.
- Nada. A responsabilidade por todas as guerras santas, por todas as inquisições, por todos os assassinatos religiosos é só deles.
- Só deles?
- Só.
- Meu Deus...

A voz de Gupimpa

A chata da turma. Sim. Desde criancinha. Era eu. Com minhas orelhas pontiagudas, meu jeito transparente, meu chapéu vermelho e um tamanhinho. A primeira da fila. Detestava a escola. Gostava do recreio. Tinha uma pequena mata de eucaliptos com quem conversava todos os dias. E uma paineira gigante doída de velhice. Só que nunca escutava a sirene de término do recreio. E todos os dias a professora olhava seriíssima quando eu tentava entrar despercebida. Por causa desse meu jeito, era a chacota da turma. Por causa das minhas palavras, incompreensível, ficava sozinha. Na hora do teatrinho infantil, eu era chamada pra fazer a bruxa. E eu fazia. Mas de raiva, fazia linda, com vestido azul do céu, fita na cabeça, brilhos prateados e a varinha de condão com uma estrela na ponta. Quando me perguntavam que raio de bruxa eu era, explicava:
- Sou uma fada má, não uma bruxa.
E era. Uma fada. Nem má, nem boa e muito menos com varinha de condão. De chapéu. Vermelho.
Mas, as coisas mudam. E como mudam. Saída da escola quis ser diferente. E fui. Comecei a falar de um jeito que me entendiam, comecei a treinar a simpatia. Fui dando jeitos em tudo, menos no visual. Ah, eu amo minhas roupas rasgadas com cheiro de mato.
De tanto que quis, virei popular. Onde ia todo mundo gostava de mim. E eu ria, e ajudava, e conversava, e ria. E todo mundo adorava. Quase fiquei feliz. Tinha esperança. Mas um dia, por sinal um lindo dia, não quis mais. Encontrei outra fada. Achei que podia e era hora. De contar quem eu era.
Eu era e ainda sou. A chata da turma.