controvérsias

"A cada mil lágrimas sai um milagre”

Alice Ruiz

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Surreal

Estou no meu silêncio, amortizada pelo som da minha janela. Pasmo, sempre. É. Hoje parei na frente de alguns e-mails de feliz natal, desejos de ano novo feliz e com saúde, essas coisas. Acariciando minha gata, bateu forte um cheiro de maresia tão, mas tão longe. Travei na saudade. Não consegui escrever uma linha sequer aos meus amigos queridos. Estiveram aqui, fizeram maior festa, fiz tirolesa, alguém perdeu um par de tênis (juro que não está aqui), e até agora não respondi: as fotos, os comentários, as risadas. Não me compreendo. A tristeza de agora, nesse momento segundo, travo. Sento para trás, na cadeira que a Sânia me deu, cruzo os braços e olho a tela do monitor como uma paisagem. De cheiros, motores, Ernestos e capatazes. O Ernesto morreu. De solidão. Achando que era cachorro, longe da vaca que o amamentou, esse borrego guacho foi rejeitado pelas outras ovelhas. A gente empurrava ele para dentro do galpãozinho delas e ele se encolhia num canto. Elas olhavam aquele ser estranho, igual a elas, mas diferente. Desistimos. Ficou pastando num potreiro dele. Parou de pastar. Nem a ração pra cavalo que ele tanto gostava, comia mais. Deitou na frente da porta dos fundos por onde as crianças pulavam por cima dele quando voltavam da escola. Achamos ele assim, deitadinho, de olhos abertos, esperando as crianças que não estavam mais lá. Nosso capataz enterrou ele no meio da mata. Achou uma pena que não poderíamos fazer um churrasquinho dele. Pensamento simples e direto: “Amanhã ou depois a ovelha fica doente e cai mortinha. Eu não tenho pena de matar, aí pelo menos a gente come.” Argumento bom para carnívoros que nem eu. Cláudio tem suas máximas e dirige a vida campeira pelo cheiro: “Cheiro forte, bugio por perto; cheiro doce, é tatu.”Essa vida campeira é de uma praticidade que corre muito longe de minhas veias. Admiro, até venero, a paisagem surrealista de minha janela amanhecida.

O afeto dos cavalos é de uma intensidade ímpar, a gente se sente amado por eles. Sempre atrás de uma boa ração ou um punhado de alfafa. Uma amiga muito querida quis fazer amizade com nosso potro Ravi, de um aninho. Ele deu as costas para ela, depois de cumprimentá-la. Voltou ao seu fazer mais sagrado: pastar. Falei que a gente chegava perto muito fácil com um baldinho de ração no que ela me retruca: “Esse tipo de relação não me interessa.” Aí, fica difícil. Bicho é rango. Ué, o bicho tem a natureza de rangar o dia inteiro, o tempo todo, inclusive à noite, o cara só pensa nisso. E depois, a gente faz a mesma coisa, porém inserido em regras sociais bem complexas. Quando quero fazer amizade com alguém, convido para um almoço, um café, um chimarrão. Quando quero um encontro, convido para jantar. É rango, símbolo básico de qualquer sobrevivência. Não existe amor que faça mover essa máquina chamada corpo, se não tiver arroz (esse trocadilho horrível, nem o Chico inventaria).