controvérsias

"A cada mil lágrimas sai um milagre”

Alice Ruiz

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Com amor aos deprimidos

A primeira coisa que devo destacar é que esse texto diz respeito as minhas experiências, mas com a convicção de que não sou a única. Então, me perdoem o estilo egoico e sintam-se em casa, ou não, por estas linhas.
Eu sou uma pessoa deprimida. Depressão, dizem, é uma doença. Uma doença que pode ter fundo químico, avisam alguns, e os mais informados sabem que a depressão é apenas um sintoma de uma doença grave da alma. Penso eu que a fase aguda das minhas crises depressivas nada mais é que a dor de viver gritando mais alto que o resto. Sim, porque dor de viver, dor da vida, dor de estar vivo, tenho 24 horas por dia, desde que me entendo por gente, já que não posso garantir o “desde que nasci”. Já veio junto com a esperança de um dia essa dor deixar de existir. Bom, essa esperança hoje não existe mais, o que acontece é que tem fases onde ela lembra a picada de um mosquito, ou a suave compressão que amarrota o peito, e outras fases que ela bomba pelo corpo inteiro, vira furacão e destrói o que encontra pela frente.
As pessoas divido em várias categorias, que não são excludentes, pelo contrário, se somam, e até tenho vontade de fazer uma enquete. Vou fazer. Um dia. Mas entre as várias categorias existe uma que é a dor de viver. Tem gente que sente, tem gente que não sente. Tem gente que diz que todo mundo tem. Esse é um outro tema que vou passar de raspão e aprofundar uma outra horinha: a incapacidade que o ser humano tem de ver a diversidade da vida. De simplesmente achar que todo mundo sente igualzinho a ele. Caros amigos, saibam, as pessoas são diferentes e sentem diferente em relação a muitas coisas. Ouvi várias vezes uma pessoa falar que não acredita em bissexualidade. Pode continuar não acreditando que vai continuar existindo, muito bem, obrigada. Quando ouço alguém dizer que viajou o mundo inteiro e percebeu que o ser humano é igual nos quatro cantos do planeta, desconfio seriamente que essa pessoa não saiu de casa mentalmente. Simplesmente enxergou o mundo inteiro como se fosse a esquina de sua rua. Mas confesso, é difícil, difícil mesmo entender que as pessoas podem ser diferentes da gente. O que absolutamente não as impede de serem. Ainda bem.
Tem gente que acha que depressão é doença de rico, porque pode se deprimir, porque se tivesse que cuidar de um filho ou de sua subsistência, não se deprimiria. Garanto a vocês que é só uma questão de nomes. Quem tem informação, estudo, essas coisas, tem depressão; quem é paupérrimo e sem informação, “sofre dos nervos”. E todos os transtornos chiquérrimos que podemos sofrer: déficit de atenção, bipolaridade, transtorno de imagem, transtorno delirante e por aí vai, podem se transformar rapidamente em “doença dos nervos”. Mas tenho a leve desconfiança de que esses transtornos na verdade são peculiaridades, traços de personalidade que foram tragados pela falta de produtividade e, principalmente, pelo incomodo social, e enquadrados como “transtorno”. E dê-lhe comprimidinhos para que a culpa não aterrorize o pobre ser que não está dentro dos parâmetros de um bom comportamento social. Haja Prozac!
A culpa. Uma das maiores causas da depressão é a culpa. Sim, a culpa. Maldita culpa. E essa culpa é consideravelmente ampliada com a famosa crença “tudo depende só de você”. Essa é a parte que mais me fascina. Vivemos numa sociedade onde tudo está interligado. Para que eu tenha luz elétrica em casa existe uma infra-estrutura gigantesca que precisou de transporte, de muitas obras e de muitas, mas muitas pessoas que trabalharam nisso e que ainda trabalham. Eu dependo de todas essas pessoas para ter luz em casa. E quando falta luz na minha casa a culpa é de quem? Se não paguei a conta, é minha e se paguei em dia, bom... da “empresa”. Uma instituição que se chama “pessoa jurídica”. Bom, é uma pessoa. Embora não tenha carne, ossos, nem coração. Aliás, adoro quando uma “pessoa jurídica” me responde que não pode atender a determinado pedido porque o “sistema” não permite. Eu saio correndo para colocar meu nariz de palhaço e falar com voz fanhosa ao telefone.
E é essa mesma interligação, essa infra-estrutura gigantesca que criou nossas incríveis cidades e que precisa funcionar sob o mau augúrio de um colapso e de pânico geral, que necessita de pessoas muito bem comportadas. De preferência, sem nenhum tipo de transtorno. É só um exemplo muito simples de que as coisas, ou meu fracasso, ou meu sucesso, ou minha cura, ou minha não cura, não dependem só de mim. Também dependem do funcionamento do SUS. Tô ferrada. No máximo, isso quando possível, o primeiro passo da vontade é meu. Ok, mas como ter vontade se a essência da depressão é exatamente não ter vontade? Concordo, é um pouco perigoso esse meu parágrafo anterior porque posso fomentar a autopiedade e a capacidade de um sintoma intrínseco a qualquer doença da alma que é a de “ser vítima” de um mundo cruel, de uma mãe cruel, de um marido cruel, de um filho cruel, de um chefe cruel, de uma vida cruel. Mas não é essa a idéia que quero passar, quero apenas que me ouçam, malditos seguidores do “você pode se acha que pode”! Eu sei que não posso, e a culpa me rói inteira por dentro por saber disso. Além de sofrer um tanto pela doença, ainda devo acrescentar a culpa de que a culpa, afinal das contas, de existir, de doer, de ser assim, é minha. E exclusivamente minha! Não posso culpar ninguém por isso, então, porque culpar justo a mim? Para que eu possa sobreviver com um mínimo de paz, passei a acreditar que a vida é assim, cheia de sortes e azares, de sincronicidades, mas também de coincidências.
E ainda acrescente a esse caldo de culpas, a culpa do fracasso. Sim, porque hoje, onde a felicidade se tornou um status social (quem é feliz é uma pessoa de sucesso), ainda carrego mais isso: sou um grande fracasso. Haja. Haja leão pra matar. Vários por dia. É incrível, conheci uma menina que se dizia com mais autoridade que eu sobre determinado assunto porque era feliz há 28 anos! Meu deus! Como que ela aguenta tanta felicidade assim? E já imaginou que peso ter que sustentar esse incrível recorde? Claro, quase ia esquecendo o não direito que tenho de ser uma sofredora e uma infeliz. Tanta gente passando fome, tanta gente doente, e eu aqui, sofrendo por nada! Dizem que o amor cura tudo. Dizem que uma vida sem amor não é nada. Minha vida, infelizmente, está sem amor (eu sei, eu sei, a culpa é toda minha). Mas não posso ser infeliz porque tem gente passando fome. Mais culpa. A culpa de ser infeliz com tanta gente no meio de guerras, desesperada sob as piores condições que nossa perversão pode causar. Realmente, estou bem melhor que estas pessoas. Uma constatação, um fato, que não alivia minha dor. Traz mais culpa ainda por sofrer com toda essa capacidade, com toda essa informação, essa articulação, essa inteligência, esse conhecimento, tanto talento, essa cultura! Ok, vocês venceram. Podem escrever na minha lápide: “Ela tinha potencial”.
Dizem também que a culpa é não ter nenhuma crença: não ser budista, capitalista, comunista, xintoísta, hare krishna, não ser da antroposofia, da filosofia, da culosofia, não ter nenhum isto, ismo, que caiba nas minhas não ideias ou não ideais. Li em algum lugar que foi deus quem me fez assim. Acreditando em tudo, desconfiando de um tudo.
Outra característica marcante de quem é doente da alma é uma capacidade infinita de fazer mal a si mesmo. Nunca tiro primeiro lugar em lugar nenhum. Se chego a ter chance em alguma coisa, boicoto. Se conheço pessoas bacanas, afasto. E é absolutamente incontrolável. Quando penso que passei a perna nos meus boicotes, é porque ainda não percebi a armadilha que armei. E lá vem galopando, com toda sua alegria... adivinhem. A culpa. Ela mesma. Em pessoa. Com sua voracidade judaico-cristã que me pune por não ser casada, por ser mulher e carregar o pecado original, por não ter emprego fixo, por gostar de sexo, por ser obesa e fora do controle social e da linha dietética caríssima dos supermercados. Vocês já viram o absurdo do preço dos orgânicos? Diz uma amiga querida que “a gente paga pela consciência”. Não entendo que tipo de consciência é essa, tão elitista. Me dei conta desse absurdo em um restaurante perto da minha casa, que vende também produtos naturais e orgânicos, onde havia uma prateleira de suco de uva com a mesma garrafa, da mesma marca e dois preços. Uma com selo de orgânico, custando 60% a mais que a outra, sem o selo, da mesma fazenda, do mesmo produtor e da mesma terra! Voltei correndo pra casa colocar o meu nariz de palhaço, com a garrafa mais barata, pelo menos. E apesar de todas essas coisas e muitas que poderia acrescentar e que não me vem à cabeça nesse momento, continuo deprimida.
Mas hoje, lendo um e-mail de uma lista de discussão, um textinho lindo, que me fez lembrar um tempo cheio de esperança, de alegrias pequeninas e máximas, de profunda gratidão. Uma vaga ideia de como pode ser diferente bateu no meu coração. Tinha esquecido a lição da guerra que minha alma trava: tudo passa. Até a depressão.

2 comentários:

  1. Deprimidos unidos jamais serão vencidos!
    Gostei de seu texto. Veja se se identifica com os meus: http://cronicasdeumdeprimidocronico.blogspot.com/

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  2. - Acho que não exixte um texto que se identifique tanto comigo, quanto este, só queria dizer que, como você disse, eu tenho o "dom" de me fazer mal! "/

    Bem era isso.

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