controvérsias

"A cada mil lágrimas sai um milagre”

Alice Ruiz

sábado, 25 de outubro de 2008

Rosa e Rui (2005)

A história é verdadeira no encontro, na fuga, no morro embarrado, na sacola rasgada, nos tiros de espingarda e no casamento consagrado pela noite de núpcias, pois não havia igreja nem padre por perto. Dona Genoveva nunca mais cruzou o morro de volta. O restante dos detalhes são feitos e saídos do meu romantismo. A foto de Dona Genoveva (Rosa) você encontra em "Pessoas e pessoinhas".

Rosa e Rui

Meu pai era muito severo. Olhava reto quando deixava cair uma migalha do pãozinho da manhã pelo chão de cimento enfeitado de areia da praia. Pescador, o homem. Minha mãe, calosa de roupa lavada e tecendo renda dos fins de semana, era quase sorrindo.
Mesa de domingo era mesa cheia. Pai, Mãe, 7 irmãos, 4 sobrinhos pequenos, 15 primos, 11 tios... Era mesa farta feita de madeira grossa. Ficava perto da Lagoa, quando não ventava demais, mas, cabia todo mundo, se apertando e se divertindo, lançando olhares em decotes, pernocas e músculos de homem menino. Não era meu primo aquele olhar insistente. Amigo de pesca foi dar naquele domingo em meio à mesa do quintal. Escreveu na areia: “Rui”. Escrevi também: “Rosa”. Bateu descompassado coração, nem levantava olhar, subia aquele calor e do mundo mais nada sabia.
-Rosa!
Esse era meu pai. Saí ventando saia solta, mas olhei pra trás, pra guardar aquele sorriso menino homem de quero mais. Durante a semana, querendo só almoço de domingo, areando panelas e pratos na Lagoa, sonhando e tecendo a renda junto com a Mãe. Assim que levantava os olhos, via, na outra praia, sorriso de Rui. E o calor subia. Numa das caminhadas com a tina nas mãos, empilhando panela lustrosa, não vi Rui na praia ao lado, mas alvoroço na entrada de casa. Rui saindo de pé duro e cara amarrada. Pai gritando que nunca mais viesse dar nesses costados, que filha dele merecia destino melhor. Olhei pra Mãe que balançou a cabeça, olhei pra Pai que pedia corresse pra dentro. Olhei pra Rui que andava firme olhando de ré. Olhar de promessa.
Domingo nem tinha que aparecer na mesa. Apareceu na outra praia, sentado na beira de fogo noite inteira, sorriso de jura e olhar de faísca. Garrafa de cachaça deitada. Vazia. Na semana, quando mãe deu folga pra buscar sabão, Rui chegou rápido e cochichou trás de mim:
- Sábado, minha Rosa, sábado.
Olhei e tinha sumido num risco, só vi Mãe chegando e calor de corpo subindo. Caí na água fria. Mãe viu e não quis entender, caiu também, brincou de respingar com os pés.
Só sábado agora queria. E na semana que não passa, vi Rui na outra praia, olhos de promessa, sorriso de verdade da jura. Calor subia e não parava de queimar nem mais com água fria. Lustrei sandálias na quinta, passei vestidos na sexta, arrumei sacola na manhã de sábado: escova, pente de osso, fita de cabeça, lençol, camisola e a boneca de pano. Cada coisinha o calor subia. Arrepiava. Escondi sacola embaixo do sofá.
Escureceu a areia, noite de nuvem, mata de breu. O caminho, já sabia, atravessar o morro junto de Rui. Ouvi o ronco de Pai, a mexida e cotovelada de Mãe. De meu lado, o beliche de irmãs sonhando casar. Saí na quieta, peguei sacola e risquei jardim. Mas Pai ouviu a porta, bendita porta que deixei aberta pra não bater, mas o vento veio de aviso da Lagoa e a gritaria se deu. As luzes acenderam, o tiro foi dar no ar. Rui pegou na minha mão e cochichou: “É agora ou nunca”. “Agorinha”, respondi, subindo a trilha molhada e escorregadia, ouvindo o Pai gritando e Mãe soluçando.
Rui firme, não parava. Calor de mão de Rui fazia subir calor de corpo e corria mais. A mata nem via, o silêncio dizia no sossego que dava pra ir. As chinelas já embarradas, num escorregadio a sacola rasgou. Olhei pra trás na hora do segundo tiro da espingarda de matar cobra. Só manchinha branca de camisola, fronha e minha primeira renda branca de segurar vela. Um suor danado escorria quase cachoeira fria, a sandália rasgou de tanto barro, Rui não largava minha mão, nem olhava pra trás. Terceiro tiro. Parei de olhar na horinha de chegar no pinote do morro. Rui me puxou e abraçou firme, eu sentia meu suor mudar e calor não ser mais de fuga. Apontou as luzinhas lá de baixo, nova vida. Saltou pra frente sem despegar mão. Saltei atrás e na trilha toda chumbada de barro vermelho, escorregamos. A cada curva uma pequena trombada em raiz, tronco, pedra. A gritaria da Lagoa ia sumindo quanto mais a gente descia. Tiro não tinha mais.
Caímos. Fim de trilha, corpo inchado, sacola sem nada. De mãos dadas, seguimos a luz cada hora mais forte. Luz de quarto com cama de rosas. Onde o calor de menina cedeu.

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